1850. Um ano canônico na história da formação social do Brasil, em
particular do Rio de Janeiro. A pressão dos ingleses pelo fim da escravidão se
intensificava, inclusive com a ameaça de invasão militar à cidade, capital do
Império. Não seria mais possível ao governo brasileiro repetir o que fizera em
1831, quando promulgou a primeira lei contra o tráfico
negreiro. Uma "lei para o inglês ver", argumento utilizado para que a mesma
passasse no Parlamento. A lei declarava "livres todos os escravos vindos de
fora do Império" a partir daquela data (Lei Diogo Feijó). Nos anos que se
seguiram à sua promulgação, no entanto, o número de negros trazidos da África,
em vez de diminuir, aumentou de forma expressiva. Cumpre observar que, para os
legisladores, "negro", "escravo" e "africano" eram sinônimos.
Por que 1850? Porque em setembro daquele ano, nos dias 4 e 18, foi
editado um "pacote" legislativo, como se diz hoje: no dia 4, a Lei nº 581,
a segunda contra o tráfico; e no dia 18, a de nº
601, que dispôs sobre a titulação das terras no espaço do Império. Era ministro
da Justiça Eusébio de Queirós, proeminente figura do grupo conservador
"Saquaremas", no poder, alinhado aos "barões do café". Curioso que a Lei nº 581
vai ser registrada pela historiografia pátria como "Lei Eusébio de Queirós",
enquanto a Lei nº 601, de interesse dos proprietários de terras e contrária aos
dos sem-terra da época, aí incluídos os negros (mas defendida e assinada pelo
mesmo ministro dias depois) fica sem padrinho. A lei veio a ser referida depois simplesmente
como "Lei de Terras", inobstante as profundas implicações na estrutura social e
econômica do País. Seus efeitos estão aí, na cidade e no campo. Interessante
que em nenhuma das duas leis há qualquer menção aos mais de 700 mil africanos
que tinham entrado ilegalmente entre 1831 e 1850, e que, pela Lei Diogo Feijó,
deveriam ter ficado livres.
A chamada "Lei Eusébio de Queirós" visou a reprimir o tráfico, e não a
extinguir a escravidão, como se sabe. Na verdade, afetava mesmo os interesses
dos produtores de açúcar do Nordeste, em crise, e nem tanto os dos produtores
da florescente indústria cafeeira do Sudeste, já que estes contavam com o
mercado interno de escravos, vindos daquela para esta Região. Este fato pode
explicar a posição de Eusébio de Queirós no processo. Porém todos sabiam que os
ingleses tinham pressa, e que não seria possível postergar a abolição da
escravatura por muito tempo; e que, com o seu fim (e o fantasma da
República...), era certo que ex-escravos, forros, ingênuos e outros
despossuídos da época pleiteariam a posse das incontáveis
áreas ocupadas por eles décadas a fio, fosse em quilombos nos morros e nas
matas, fosse em outros lugares ermos e abandonados. Coincidentemente, dias
depois da "Eusébio de Queiros", vem à luz a dita "Lei de Terras", com a qual se
extingue, na prática, o instituto jurídico da posse. O objetivo declarado do governo era proceder à regulamentação fundiária do País. Porém o Preâmbulo e o
Art. 1º não dão margem a dúvidas sobre os seus reais objetivos:
"Dispõe sobre as
terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de
sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de
posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras,
sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como
para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o
Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara.
Art. 1º Ficam
prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o
de compra."
De acordo com o Art.
3º e seus parágrafos, devolutas seriam, em resumo, as terras
não aplicadas a algum uso do poder público e as que não se achassem sob domínio
privado "por qualquer título", além das que não se achassem "occupadas
por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas
por esta Lei."
Com a lei, portanto, a terra transforma-se em mercadoria. Em
princípio, só por meio de compra ou herança será possível
a alguém tornar-se proprietário. Estabeleceu-se uma reserva de mercado para os
grandes proprietários, pois, ao mesmo tempo em que inviabilizou a
aquisição por meio de posse, a Lei ofereceu todas as facilidades
para a regularização das concessões anteriores e ocupações reconhecidas pelo
Governo, incluídas as sesmarias "sem preenchimento das condições
legais". Ou seja, as terras do Brasil ou seriam devolutas ou pertenceriam a
algum grande proprietário, ainda que desconhecido. A partir dali, fechava-se a
porteira. Não entrava mais ninguém, a não ser quem tivesse dinheiro bastante ou
"berço". Não bastasse isso, decidiu-se reservar, na Lei, terras para que o
Império desenvolvesse suas políticas imigratórias. Assim, as terras desabitadas
ou ermas, sem "dono", até mesmo as desconhecidas, seriam terras devolutas, do
Estado, públicas.
Um dado importante para a compreensão do quadro de desorganização urbana
atual, portanto, é que, naquele contexto, "público" era entendido como sinônimo
de "pertencente ao governo". Nem pensar em "público" como espaço pertencente à
coletividade. Fazia sentido. Não se poderia falar em coletividade numa
sociedade de senhores e escravos. Ainda hoje, quando alguém exclama: "A rua é
pública!", pode, na verdade, estar querendo dizer que ela não tem dono, não é
de ninguém. Logo, será de quem chegar primeiro, tiver mais força ou
"relações"... Não se há de estranhar, portanto, que, abandonadas pelos antigos
"donatários" de sesmarias ou "pertencentes ao governo", as encostas dos morros
tenham sido usadas da forma como o foram. Em 1897, por exemplo, o Governo da
nascente República autorizou os retornados de Canudos a se instalarem
"provisoriamente" no Morro da Favela, atual Morro da Providência, no centro do
Rio. Esta é considerada a primeira favela do Rio. Um provisório definitivo...
Bem, assim foi a repartição da terra no Brasil. E, no fundo, continua a
ser, como o exemplificam as pendengas, com mortes, entre posseiros e grileiros,
no campo e na cidade; e a luta dos sem-terra e sem-teto.
Hoje, diante da violência urbana, da população de rua, da proliferação
de favelas (espaços um dia compreendidos em alguma das Sesmarias doadas aos
"homens bons da terra" e a ordens religiosas, ou em terras devolutas); e,
Brasil afora, dos milhares de comunidades remanescentes de quilombos (como as
da Marambaia e a do Sacopã, na Lagoa, Rio), perguntaríamos, como Drummond: "E
agora, José"? Será que basta a José usar o porrete? Ora, a configuração social
do Rio de Janeiro é incompatível com uma padronização estético-cultural
forçada. Aliás, o mundo já viu o que acontece quando a obsessão com a 'uniformização' social
ocupa o centro das políticas governamentais...