(DA SILVA, Jorge. "Militarismo". In: SANSONE, Lívio et FURTADO, Cláudio (Org.). Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. ). Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia - EDUFBA, 2014, pp. 349 - 362)
Conceito
"Militarismo" é daqueles termos insuscetíveis
de definir por meio de um enunciado preciso ou de conceituar de modo a abarcar
as suas diferentes nuanças. Inobstante a dificuldade, é comum considerar-se
militarismo como uma ideologia segundo a qual a expressão militar do poder de
um Estado tem primazia na formulação e condução das políticas públicas, do que
resulta a preponderância dos militares em relação aos civis ou a sua forte
influência na tomada de decisões. Cumpre observar, no entanto, que ao significante "militarismo" corresponde um amplo feixe de significados, dependendo do
contexto social em que o mesmo é empregado e da perspectiva de quem o emprega.
Assim, poderá ser praticado enquanto é negado ou mascarado sob o manto do
nacionalismo. Ou ser apresentado como um imperativo da busca da paz e,
paradoxalmente, de defesa da democracia.
Ajudará na melhor compreensão do conceito, no
entanto, levar em conta que a palavra militarismo (de militar ismo) tem o seu
campo semântico ligado ao substantivo latino miles, -itis (soldado, soldados); ao adjetivo militaris, -e (de soldado, militar, da guerra, guerreiro), ao verbo
milito, -are (ser soldado, fazer o
serviço militar, combater), e ao substantivo militia, -ae (serviço militar, campanha, expedição, tropas,
milícia). O cerne da questão, portanto, reside na diferenciação entre os
sentidos de "militar" e "militarismo", ou seja, entre os peculiares modos de
ser e agir de um indivíduo ou grupo, como explica Castro (2004) ao aludir à
distinção entre o que se costumou chamar de "espírito militar", inerente aos
valores cultuados pelos integrantes do estamento castrense - a ética, a
disciplina, a integridade moral -, e "militarismo", visto como a ausência
desses valores ou a deturpação dos mesmos. Ou, como afirma Boer (1980) em Militarismo e clericalismo em mudança,
trata-se do desrespeito, pelos militares, dos limites de sua função. Restará
saber, porém, em que ponto exatamente se situariam esses limites.
Huntington (1957), reconhecido militarista
norte-americano, defensor do modelo político-militar prussiano, toca num aspecto
que ajuda a esclarecer esse ponto. Ele concebe a atividade militar nas
democracias liberais como uma profissão regular, com uma ética profissional
própria, orientada, acima de tudo, pela virtude da obediência. Para ele, quanto
mais profissionalizado for o setor militar, melhores serão as relações
civil-militar. Tal abordagem, em linhas gerais, lembra tanto a alusão de Castro
(Op. cit.) ao "espírito militar" quanto a definição proposta por Boer (Op. cit,
p. 225) de "ideologia militar", correspondente à "mentalidade militar", própria
dos profissionais, cujos valores "são dedutíveis da natureza da função". E
conclui Boer que se poderiam identificar cinco características principais da "ideologia militar": o autoritarismo, o pessimismo a respeito da natureza
humana, o alarmismo, o nacionalismo e o conservadorismo político. A ideologia "militarista" também apresenta essas características, com a diferença de que os adeptos da
mesma exacerbam-nas ao máximo, em tudo vendo ameaça ou desordem. Em suma, o
militarismo "não é dedutível da natureza da função militar".
Raízes do Militarismo
Encontram-se raízes do militarismo na
história da humanidade, em íntima relação com o fenômeno da guerra, embora não
se possa afirmar que os grupos humanos, antes do quinto ou sexto milênio a.C.,
se enfrentassem de forma planejada e organizada. Notícia desse tipo de enfrentamento,
opondo contendores de um lado e de outro, com o uso de armas e equipamentos
próprios e a aplicação de táticas, só aparece posteriormente, em registros
escritos, inscrições pictográficas em cavernas e achados arqueológicos sobre
feitos de guerreiros e reis. Antes, não mais que incertezas, embora Keeley
(1996), em War before civilization
(Guerra antes da civilização), baseado em escavações de que participou, conclua
que confrontos desse tipo teriam ocorrido antes, no início da Era Neolítica
(aproximadamente 9.500 anos a.C.).
Isto não significa que as contendas da
pré-história, e mesmo da história antiga, sejam consideradas "militares" stricto sensu, como o termo é entendido
depois. A referência é feita para
mostrar que o enfrentamento armado entre os grupos humanos parece ser uma
contingência da história do homem, independentemente das questões filosóficas
para saber se, nos primórdios, houve realmente um "estado de natureza" (anterior à associação comunitária), e se, nesse "estado", o ser humano era
inerentemente pacífico ou não, tema que ocupou as preocupações, dentre outros,
de Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau, aquele sustentando que o estado
natural do homem é o de beligerância, e este, o de paz. Mas esta é outra
questão. O que importa é indagar como os grupos humanos começam a se armar, não
para caçar e defender-se dos animais ferozes, e sim para se defender de grupos
hostis, e atacá-los de forma planejada; e como as organizações militares vão
ter proeminência na constituição dos estados. Nas palavras de Keeley:
"Não
surpreende então que as primeiras histórias registradas, os primeiros relatos
dos feitos dos mortais, sejam histórias militares. Os mais antigos hieroglifos
egípcios registram as vitórias dos dois primeiros faraós, o Escorpião Rei e
Narmer. [...] De fato, até o século atual, a historiografia foi dominada por
relatos de guerras" (p.23) [tradução livre].
Na verdade, porém, de cerca de seis mil anos
para trás não se consegue ir muito além de conjecturas sobre como os diferentes
grupos de homo sapiens sapiens, os homo atuais, se relacionavam.
À medida que os agrupamentos humanos vão se
tornando mais populosos, formando sociedades complexas, os conflitos se
avolumam. Das desavenças pontuais do passado entre tribos vizinhas, chega-se
aos pequenos reinados da antiguidade, cujos régulos, ao mesmo tempo em que se
estruturam para a defesa, preparam-se para atacar outros agrupamentos, na busca
de mais poder, prestígio, escravos e, principalmente, riqueza. Inaugura-se aí,
lá pelo quinto ou sexto século a.C, uma fase expansionista, para o que será
necessário reunir os meios disponíveis e contar com armas produzidas
especialmente para os embates, além da necessidade de reunir contingentes cada
vez maiores de guerreiros. Tem-se aí o embrião dos futuros exércitos, no
sentido de miles, -itis, militaris, como vimos. Daí, o
aparecimento dos impérios, dentre os quais se destacam, entre os antigos e os
modernos, o egípcio, o do Mali, o assírio, o asteca, o inca, o romano, o
mongol, o português, o espanhol, o inglês, o francês, o alemão. Comum a todos
eles, em maior ou menor grau, a centralidade das armas na condução da política.
O Papel dos Militares nas Democracias e o
Militarismo
É esclarecedora a diferenciação feita por Ruy
Barbosa entre "instituições militares" e "militarismo" em discurso na campanha
eleitoral de 1909 - 1910 (Barbosa, 1910, p. 43) quando se apresentou como
candidato à presidência da República brasileira. Em linhas gerais, corresponde
à distinção "espírito militar" / "militarismo", comentada acima. A República
que se instalara em 1889 resultara de um golpe militar que derrubou a monarquia
da Casa de Bragança, do qual saiu presidente do Governo Provisório um dos
líderes do movimento, marechal Deodoro da Fonseca. Ruy Barbosa fora ministro da
Fazenda desse governo, ao qual se seguiu o de outro marechal. Em 1909, tendo
como opositor na disputa presidencial também um marechal - que viria a vencer
as eleições -, Barbosa lançou a "campanha civilista":
"O militarismo, governo da nação pela espada,
arruína as instituições militares, subalternidade legal da espada à nação. As
instituições militares organizam juridicamente a força. O militarismo a
desorganiza. O militarismo está para o exército, como o fanatismo para a
religião, o charlatanismo para a ciência, como o industrialismo para a
indústria [...]. Elas são a regra; ele, a anarquia. Elas, a moralidade; ele, a
corrupção.[...]"
Outro ponto importante a respeito do
militarismo refere-se à forma como o fenômeno costuma manifestar-se. Pode se
referir tanto à sua manifestação nos limites territoriais de determinado
Estado, caso dos recentes regimes militares de países sul-americanos e
africanos (o que se poderia chamar de "militarismo doméstico"), quanto na
relação de um Estado poderoso com os demais, caso dos Estados Unidos, que
poderíamos chamar de "militarismo imperial"; ou combinar as duas formas de
militarismo, caso do Império Prussiano e da Alemanha nazista.
Assim que, no âmbito interno dos estados, "militarismo doméstico", podem-se elencar pelo menos três sentidos principais
do militarismo: (a) como deturpação do "espírito militar" por parte dos
próprios integrantes das instituições militares; (b) como controle, direto ou
indireto, do sistema político-administrativo pelos militares, do que são
exemplos acabados as ditaduras militares; (c) como compartilhamento, sobretudo
em regimes autoritários, ainda que liderados por civis, do "espírito militar" por parcelas significativas da sociedade, caso do ideal do Estado prussiano, em
que os valores e atitudes militares foram inculcados no próprio povo, como
observou Johnson (1917) em The peril of
Prussianism.
Já o "militarismo imperial" manifesta-se,
como mencionado, nas relações internacionais. No limite, o Estado que o pratica
pode, internamente, conformar-se ao modelo democrático, enquanto se estrutura
militarmente para impor a sua vontade algures. É do que os antimilitaristas
costumam acusar, por exemplo, os Estados Unidos. Para Cook (1964), militarismo
seria isso, como o descreve em O Estado
Militarista, e no qual se refere aos Estados Unidos como um país que
desenvolve a sua política externa em consonância com os interesses do chamado
"complexo industrial-militar". Cook afirma inclusive que, no caso da Guerra
Fria, havia o interesse, tanto dos militares quanto da indústria bélica, de que
ela não terminasse. E arremata: referindo-se ao quadro que se configurou ao
término da Segunda Guerra Mundial: "O
Estado Militarista nascera. Servira-se da ameaça da Rússia para traçar as
linhas rígidas da guerra fria [...] Como povo, continuávamos pensando que
éramos uma nação amante da paz." (p. 148).
Esta não era, e não é, a visão dos que
entendem que o desenvolvimento daquela Nação depende da sua segurança, para o
que o país deve estar preparado contra qualquer ameaça. Os que assim pensam
veem o fortalecimento do "complexo industrial-militar" como uma necessidade
estratégica, sem contar os ganhos econômicos, não sendo o caso, aqui, de entrar
nessa polêmica. De qualquer forma, não é despiciendo anotar que outras supostas
ameaças à segurança nacional, finda a "guerra ao comunismo", têm sido
utilizadas como razão para alimentar os ideais militaristas tanto de generais
quanto de civis norte-americanos, o que justificaria, por exemplo, a "guerra às
drogas", a "guerra ao terrorismo", a intervenção militar "preventiva" em outros
países contra a produção de armas de destruição em massa.
E a terceira forma de militarismo, que, grosso modo, combina o "militarismo
doméstico" com o "imperial". É manifestado em países nos quais o ethos militarista permeia amplos setores
da sociedade civil, e que fazem do militarismo instrumento privilegiado na
relação com as demais nações, do que são exemplos emblemáticos o Estado
Prussiano e o Estado prussiano-nazista alemão.
Regimes Militares e a Vida dos Cidadãos
Em foco a Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa. Desde logo, há que se ter clareza de que militarismo e
autoritarismo são irmãos siameses, inerentes às ditaduras e refratários aos
ideais democráticos, o que implica reconhecer que expressões como "regime
autoritário", "regime militar", "Estado burocrático-autoritário" (na expressão
de O?Donnell (1987) para caracterizar os regimes implantados no Brasil e outros
países da América Latina) são, em essência, eufemismos para a palavra
"ditadura". Nas ditaduras, os cidadãos não contam, e são vistos como existindo
para o bem do governo do momento, o qual, arrogando-se o direito de decidir
sobre o que é bom para todos e cada um, não se vê como veículo do atendimento
dos anseios dos diferentes grupos sociais. Os que divergem dos detentores do
poder e dos seus associados são tidos por inimigos, não do governo, mas "da
Pátria". Sem contar as consequências danosas do militarismo para outras
sociedades, caso de nações africanas submetidas ao colonialismo imperial
português, e depois, expostas aos interesses estratégicos de grandes potências militares,
caso particular de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Os partidários do militarismo, assumidos ou
não, costumam enfatizar os avanços, em termos materiais, conseguidos durante
ditaduras, tais como: equilíbrio das finanças públicas, segurança e ordem,
grandes obras de urbanização e de infraestrutura etc. Os antimilitaristas
apresentam duas principais objeções a esse argumento: primeira, que grandes ou
maiores avanços são conseguidos em regimes democráticos; e segunda, que os
avanços sob ditaduras, se e quando conseguidos, o são à custa da liberdade e da
submissão do indivíduo ao Estado, mediante a censura, a tortura, prisões,
perseguição aos considerados dissidentes e, no limite, a sua eliminação física.
Disso foram e têm sido acusados regimes sustentados pelas forças militares em
diferentes partes do mundo, e não seria diferente nos países da Comunidade de
Língua Portuguesa.
Cumpre reconhecer, portanto, que em regimes
de exceção a cidadania é aviltada, pois os cidadãos vivem em ambiente de medo e
desconfiança. Em se tratando de angolanos, moçambicanos e guineenses sob o
domínio político-militar português, nem pensar em cidadania. Pior ainda depois,
em meio a conflitos militares internos, fratricidas.
Esses problemas referem-se ao fenômeno do
militarismo em ditaduras ou à luta militarizada pelo poder. Outra coisa é a
influencia dos ideais militaristas em sociedades formalmente democráticas, em
especial aquelas que lutaram militarmente pela independência, como antigas
colônias africanas, ou saídas de longos períodos de regime militar, como
Portugal e Brasil.
Pedagogia da Militarização em Regime Democrático
Um acabado exemplo dos efeitos da pedagogia
da militarização é dado pelo Brasil. Nos 21 anos de ditadura militar (1964 - 1985), a militarização da sociedade foi tão acentuada que ainda hoje, passados
27 anos, constata-se que a pedagogia castrense implantada no período deixou
marcas indeléveis em setores importantes da vida nacional. E não poderia ser
diferente, como mostra Brigagão (1985) em A
militarização da sociedade. Deflagrado o golpe em 1964, uma junta militar
assume o poder e escolhe um marechal, Castello Branco, para presidir a
República. Inicia-se aí o que Brigagão chama de "montagem da máquina", que se
estenderia a toda a Administração. Além do marechal-presidente, surgem os
generais ministros e coronéis diretores de empresas estatais estratégicas.
Era preciso ainda, na visão dos militares,
conter o avanço do ideário comunista. Nada diferente do Estado Novo português.
Daí que, paralelamente à máquina "burocrático-autoritária", montou-se o que se
poderia chamar de "máquina ideológica", a qual teve como epicentro a "doutrina
da segurança nacional", formulada na Escola Superior de Guerra. Como forjar um habitus - na expressão de Pierre
Bourdieu em suas lições sobre sistema de ensino e violência simbólica - que
reproduzisse "esquemas de pensamento e ação" coerentes com a Doutrina?
Resposta: Por meio do que John Stuart Mill chamou de "tirania da opinião",
viabilizada pela rigorosa censura e pela perseguição aos jornalistas "subversivos",
e pelo expurgo de professores, parlamentares, magistrados, diplomatas e
militares tidos por esquerdistas. Tudo complementado pela apropriação
monopolística do sistema educacional-cultural, ação da qual o Ministério da
Educação e Cultura (no período, dirigido por um coronel e um general) foi o
principal instrumento. Como anotou Lozano (2006) em Os livros didáticos de História e a Doutrina da Segurança Nacional,
o controle do saber se consolidou com a inclusão obrigatória, nas escolas "de
todos os graus e modalidades", da disciplina Educação Moral e Cívica. Em boa
medida, a ideologia do regime induzia à prussianização da sociedade brasileira.
Hoje, por exemplo, na luta contra o crime e a violência, observa-se que as polícias
introjetaram o espírito do que Da Silva (1996) chamou de "militarização
ideológica da segurança pública", com a incorporação de conceitos como "ocupação",
"vitória", "inimigo", "cerco", "teatro de operações" etc. Por outro lado,
tem-se considerado natural que as Forças Armadas sejam empregadas em atividades
de natureza policial, o que é fortemente apoiado por amplos setores da
sociedade, com realce para a mídia.
Em Portugal, durante o Estado Novo desenhado
pelo Dr. Oliveira Salazar, e que durou 41 anos, de 1933 a 1974, o regime
funcionou mais ou menos da mesma forma, parecendo que os militares brasileiros
se inspiraram no modelo salazarista, tão parecidos foram os métodos. A ditadura
portuguesa valera-se igualmente da censura e do controle dos meios de
comunicação, das artes, do ensino e da cultura, e do aparelho do Estado, tendo
criado o poderoso Secretariado de Propaganda Nacional e a temida PIDE (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado). Suprimiu as liberdades civis e o movimento
social, expurgou professores, perseguiu e prendeu dissidentes políticos. E não
faltou a doutrinação, por todos os meios, da ideologia do regime. Aqui também a
"tirania da opinião", inclusive contra aqueles que, nos estertores do regime,
alertavam para a irracionalidade de se continuar com as guerras em
ultramar.
Foi contra esse estado de coisas que
militares que se opunham ao regime, em maioria oficiais de baixa patente, formaram
o MFA (Movimento das Forças Armadas) e deflagraram o golpe militar de abril de
1974, conhecido como Revolução dos Cravos, sendo esta, aparentemente, uma das
razões de o ethos militarista ter-se
enfraquecido um pouco mais naquele país, visto que os militares do MFA tinham
um ideário reformista radical, no sentido da democratização.
Passados os primeiros momentos de euforia
democrática, no entanto, a sociedade se viu às voltas com problemas adormecidos
pela censura. O aumento das taxas de desemprego e de inflação,
independentemente de fatos como os altíssimos custos do esforço de guerra; o
retorno das tropas desmobilizadas e o refluxo de cidadãos portugueses para a
metrópole, nada disso é levado em conta pelos adeptos da velha ordem, para quem
tudo seria fruto do excesso de liberdade e da falta de repressão. Setores do próprio
governo são tentados a recorrer aos velhos métodos de "lei e ordem", o que a
institucionalização democrática aos poucos inviabiliza, pelo menos em parte.
Permanecem os problemas da criminalidade e da violência urbana, com o
ressurgimento da explosiva mistura de nacionalismo com xenofobia, sobretudo em
face dos imigrantes africanos. Há quem pense novamente na polícia e na força
armada como solução.
Em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, assim
como em outras nações africanas que sofreram a opressão do colonialismo e do
imperialismo europeus, uma das heranças perversas deixadas pela dominação foi,
sem dúvida, a ideologia militarista, potencializada pelos interesses
geoestratégicos dos blocos soviético e norte-americano, na esteira da Guerra
Fria.
Em Angola, proclamada a independência em
1975, os movimentos que lutaram por ela, nomeadamente o MPLA (Movimento Popular
de Libertação de Angola), a UNITA (União Nacional para a Independência Total de
Angola), e a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), entram em disputa
pelo poder, desembocando numa guerra civil de consequências desastrosas, opondo
principalmente o MPLA, apoiado pelos soviéticos, e a UNITA, sob a influência norte-americana.
A guerra custou cerca de meio milhão de vidas e só terminou em 2002, com a
morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi.
Em Moçambique, após a independência em 1976, grupos
militares descontentes e dissidentes da FRELIMO (Frente para a Libertação de
Moçambique), que ascendera ao poder, insurgem-se contra o governo que se
instaurou e formam a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). Inicialmente um
movimento para desestabilizar a FRELIMO, o conflito descamba para uma guerra
civil de grandes proporções, deixando milhares de mortos e mutilados. De novo, a
interferência de potências estrangeiras amplia o conflito, com o bloco soviético
apoiando e financiando a FRELIMO, e o norte-americano, a RENAMO.
Na Guiné-Bissau, a luta pela independência
teve mais unidade, centralizada no PAIGC (Partido Africano da Independência da
Guiné e Cabo Verde). Embora uma colônia considerada menos importante do ponto
de vista político pelos portugueses, foi a partir dela que se deflagrou o
processo emancipatório das demais. Depois da luta de guerrilha bem sucedida contra
as tropas portuguesas, o PAIGC declara unilateralmente a independência da
Guiné-Bissau em 1973, surpreendendo os portugueses, que não a reconhecem, mas
nada podem fazer. O reconhecimento só vai ocorrer em 1974, depois da queda do
Estado Novo, queda essa que, em boa medida, deveu-se à derrota na Guiné.
Voltando ao militarismo. Não por acaso,
depois de anos de luta pela independência, e de guerras fratricidas, os países
africanos constituem-se num importante mercado da indústria mundial de armas, a
abastecer tanto os conflitos internos quanto os regionais. Hoje, vários países
do Continente são importantes produtores de armas, como a África do Sul, o
Zimbabué, a Nigéria. Armas que têm abastecido exércitos regulares, grupos
paramilitares, milícias privadas, guerrilheiros, terroristas, traficantes,
criminosos em geral. A esse respeito, é digna de nota a menção de Coelho (2003)
ao "legado das guerras coloniais nas
ex-colônias portuguesas". Mostra que a insistência em manter o domínio
sobre os territórios ultramarinos manu
militari incluía a estratégia de cooptar africanos para a luta, o que
implicava não só o recrutamento local para as forças regulares como a
mobilização de autóctones para constituírem milícias armadas, sobretudo no
campo, contra os "subversivos". Tinha-se por objetivo, como assinala Coelho
(pp. 177), "transformar as populações de meros camponeses em defensores activos da
ordem colonial, em combatentes activos contra o movimento nacionalista armado."
Bem, terminadas as guerras, ficaram os
efeitos da pedagogia militarista. Desmobilizados e divididos, mas armados e
versados no manejo de armas, o que se poderia esperar dos ex-combatentes e
milicianos africanos? Fez sentido que Angola e Moçambique tenham entrado em
sangrentas guerras civis e que, não tendo superado totalmente as sequelas
decorrentes, ainda encontrem dificuldade para consolidar a democracia, assim
como faz sentido a instabilidade política na Guiné-Bissau, sacudida por
sucessivos golpes militares.
Tendências e Desafios
Não resta dúvida de que o fenômeno do
militarismo, como ideologia ou como prática política, está presente no mundo
inteiro, inclusive no seio das democracias ditas liberais, ainda que de forma
latente. No interior dos países, a ideologia é compartilhada, de forma aberta
ou velada, por setores desejosos da cooptação dos militares com vistas aos seus
interesses, o que potencializa as tensões entre o setor militar e o poder
político. Este fato continua sendo um desafio, como um desafio continua,
sobretudo no Sul Global, a dificuldade de o poder civil dotar as instituições
castrenses dos meios indispensáveis à sua missão, e de levar em conta os seus
pontos de vista e tradições.
Na esfera das relações internacionais, cada
vez mais se percebe o predomínio da força das armas sobre a diplomacia, não
sendo talvez por outra razão que o tema do militarismo vem de ocupar posição
central na Ciência Política contemporânea, tanto no respeitante aos limites do
papel dos militares em regimes democráticos, quanto aos problemas em torno da
disputa pelo poder nos campos geopolítico, estratégico e econômico. Os países
africanos, por suas riquezas, despertam a cobiça dos países centrais. Acontece
que a hegemonia do poder mundial pela força está posta em cheque por novas
realidades. Não se está falando mais de fronteiras geográficas tão somente, que
possam ser vencidas com aparato bélico, e sim de fronteiras culturais. Como
vencer diferenças de religião, idioma, valores civilizatórios, visões de mundo
e interesses econômicos conflitantes? Aliás, essas foram as preocupações de
Samuel Huntington quando, em tom alarmista, falou em "choque de civilizações" em livro célebre. Fugiu à análise de Huntington que, por este ou aquele meio, é
pretensão ao mesmo tempo autoritária e inócua
tentar impingir a todas as nações do mundo os valores de uma imaginada "civilização
universal", fundada tão somente nas tradições da chamada cultura
ocidental.
Referências bibliográficas
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Série). Rio de Janeiro: J. Ribeiro Santos (Editor).
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Queiroz.
BRIGAGÃO, Clóvis (1985). A militarização da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar.
CASTRO, Celso (2004). O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro:
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COELHO, João Paulo B. (2003). "Da violência
colonial ordenada à ordem pós-colonial violenta. Sobre um legado das guerras
coloniais nas ex-colônias portuguesas". In: Revue Lusotopie 2003: Violences et contrôle de la violence au Brésil,
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COOK, Fred, J. (1964). O Estado militarista: O que há por traz da morte de Kennedy
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DA SILVA, Jorge (1996). "Militarização da
segurança pública e a reforma da polícia". In BUSTAMANTE, Ricardo et al
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revista. Rio de Janeiro: IBAJ, pp. 497 ? 519.
HUNTINGTON, Samuel P. (1957). The soldier and the state: The theory and politics of civil-military
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Sons.
KEELEY, Lawrence H. (1996). War before civilization: the myth of the peaceful savage. New York
/ Oxford: Oxford.
LOSANO, Andreia A.
Casanova (2006). Os livros didáticos de
história e a Doutrina da Segurança Nacional. São Paulo: Universidade
Metodista. (dissertação de Mestrado).
(http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_arquivos/1/TDE-2006-12-13T114612Z-119/Publico/Andreia Lozano.pdf)
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