(Nota: Este artigo é adaptação
do tópico 6.2 do Capítulo VI de: DA SILVA, Jorge. Criminologia crítica: Segurança e polícia. Rio de Janeiro: Forense,
2ª Ed. 2008)
Prevenção e repressão
A delimitação do conceito de segurança
pública é tema que continua aberto à discussão. Na dependência do ângulo pelo qual se toma a expressão, distinguem-se os que a tomam como função essencial do
Estado, o que remete à estruturação material deste para cumpri-la, e
aqueles que a tomam como percepção coletiva, o que remete à sua dimensão
subjetiva. Daí, na perspectiva dos profissionais e administradores do setor, nota-se
a prevalência de uma concepção técnico-jurídica, centrada em aspectos organizativos e instrumentais; e na perspectiva dos analistas externos, uma
concepção sócio-política, centrada na análise dos níveis de sociabilidade,
tranquilidade e (in)segurança.
Essa distinção é importante para esclarecer o sentido da palavra prevenção. Na visão dos profissionais e administradores do setor, é comum que
se tome o termo no sentido de prevenção policial, o que é compreensível em se
tratando apenas do trabalho da polícia. Acontece que encarar a prevenção ao crime e à
violência dessa forma (com imaginada onipresença da polícia) é gritante redução, como se prevenção fosse o mero somatório de forças policiais. Com isso, dirigentes e profissionais
tendem a descartar dados relevantes, dentre os quais podem-se citar três:
primeiro, o fato de a polícia estar contida em dois sistemas, no sistema de
justiça criminal, na esfera do Judiciário, e no sistema de segurança pública stricto sensu, na esfera do Executivo,
em que outros órgãos atuam; segundo, o fato de que as ações deste último
sistema (o de segurança pública) devem ser parte da política governamental para
a segurança em sentido lato, abarcando programas de prevenção de amplo espectro,
de prevenção primária; e terceiro, o
fato de que o poder público dispõe de meios com os quais pode contribuir para o
aumento do "capital social" das comunidades, independentemente do "capital
econômico" das mesmas, investindo na valorização do ser humano e promovendo maior
integração entre os cidadãos pela ação das associações comunitárias, das
igrejas, da escola, das agremiações de lazer; pela prática do esporte e de
atividades culturais.
Viés penal e viés castrense
Esta concepção ampliada do conceito de segurança pública,
destarte, vislumbra a articulação de medidas do sistema de justiça criminal
como um todo e das polícias especificamente, e medidas de prevenção geral.
Deve-se, porém, estar atento ao fato de que a segurança pública é uma área propícia ao embate de ideologias. As
respostas do poder público ao crime e à violência são sempre condicionadas
pelas concepções que presidem a política estabelecida para o setor. No Brasil,
estas respostas têm sido afetadas por uma tradição "repressivista" do Estado, informada
por dois vieses: o viés penal e o viés castrense, fato derivado da disputa pela
hegemonia da segurança pública em que se têm empenhado ao longo do tempo os operadores do direito
penal, de um lado, e militares das Forças Armadas, de outro. Assim, conduzida a
atividade pelos primeiros, prevalece a visão segundo a qual os problemas do
crime, da violência e da ordem pública se resolveriam com a lei penal. Conduzida pelos
segundos, os problemas se resolveriam com a força. Estas perspectivas têm
dificuldade de enxergar o crime no atacado, como um fenômeno sócio-político e
histórico, e
sequer olham para aquelas questões da ordem pública que nada tenham a ver com o
crime, como as desavenças de rua e entre vizinhos, os ânimos exaltados no
trânsito, a ordem na praia, no futebol, na praça, na esquina, no carnaval.
No paradigma
penal, a preocupação dos responsáveis pela segurança pública volta-se quase que
exclusivamente para os crimes consumados, caso a caso; para a
população dos presídios; e para estes e aqueles criminosos à solta, com
nome, alcunha e/ou sobrenome. Pouca ou nenhuma preocupação com a criminalidade
geral, nem com a violência urbana e as questões de ordem pública em sentido lato.
Se a violência campeia, seria porque faltam leis mais duras; ou porque "a
polícia prende e a justiça solta"; ou porque faltam recursos materiais e pessoal
nas delegacias e recursos de polícia técnica etc. A avaliação do desempenho de
toda a polícia restringe-se à quantidade de inquéritos realizados e de
infratores levados aos tribunais, pouco importando: as ações preventivas; os
crimes que não tenham caído nas malhas do sistema, perdidos na imensidão das
cifras invisíveis; e os crimes que podem vir a ocorrer.
No paradigma castrense, falar de ordem pública é,
curiosamente, falar de desordem pública, de combate, de guerra, contra inimigos
abstratos que, no atacado, estariam à espreita em lugares suspeitos e
determinados. Considerando o crime como uma patologia intolerável, e os
conflitos de interesses - pressupostos da ordem democrática - como algo ameaçador, o modelo castrense tem a
pretensão de "vencer" o crime (princípio militar da vitória), de erradicá-lo,
de "acabar" com a "desordem". Consequência: a reificação do aparato, em
detrimento das atividades policiais não-ostensivas, de investigação, de polícia
técnica. Se a violência campeia, seria porque os efetivos são insuficientes; ou
porque a polícia judiciária fica nas delegacias "à toa" e não vai para a rua
ajudar no policiamento ostensivo; ou porque a polícia estaria menos armada que
os bandidos; ou porque faltariam motivação e "garra" aos policiais. Estranhamente,
a avaliação do desempenho da polícia é feita como se alguém quisesse demonstrar
a sua incompetência. De acordo com essa visão, quanto mais as curvas estatísticas demonstrarem o aumento
de infratores (ou suspeitos) presos e mais apreensões de drogas e armas
efetuadas, tanto melhor para se alegar a ineficiência das políticas de segurança; quanto mais ocorrências criminais se puderem
registrar, idem; quanto mais baixas contabilizadas "do outro lado", melhor;
quanto maior o número (e o tamanho) de "cercos", "incursões", "ocupações",
tanto melhor. Nem pensar em séries históricas das taxas de criminalidade e de
vitimização.
Soma de dois equívocos
A idéia de contrabalançar ou misturar os dois modelos, como
alguém pode ser tentado a sugerir, perde de vista um dado essencial: os dois
modelos são equivocados; e a soma de dois equívocos resulta numa amplificação
geométrica. O mais grave é que, na prática, esta visão penalista-militarista da
segurança pública consolidou-se no Brasil. Ainda é com esse modelo duplamente
enviesado na cabeça que a maioria dos policiais brasileiros trabalha. Os cânones
universais da atividade, fundados em outros marcos, têm passado ao largo de
nossas práticas. Nem pensar em valores como direitos humanos, cidadania e mediação de conflitos.
Pensar na segurança pública em termos de uma equação cujos
componentes sejam somente a lei penal, a força armada e os criminosos tem sido
uma grande armadilha, da qual só se poderá fugir se forem introduzidos outros
componentes na equação: a mediação, a vítima, a comunidade, o desenvolvimento
comunitário, como se pode visualizar no Quadro 1. O problema que se coloca é
como desconstruir os paradigmas penal(ista) e militar(ista) e construir um
paradigma "prevencionista". O aludido quadro pode servir para um exercício nesse
sentido.
Quadro 1. Segurança Pública. Paradigmas
PARADIGMA
PENALISTA
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PARADIGMA
MILITARISTA
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PARADIGMA
PREVENCIONISTA
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· Atitude reativa. Falar em Segurança é falar
de crime; de um problema do Governo e do Judiciário.
· Atividade policial referida às leis penais.
Formalismo burocrático do inquérito policial.
· Concentração na atividade de polícia
judiciária. O que importa são os crimes consumados, em prejuízo da prevenção
e das vítimas.
· Traço individualista. Foco nos infratores
de forma individualizada.
· Pretensão de "resolver? o problema do crime
e da violência com a repressão policial-penal.
· Desempenho referido à Quantidade de
inquéritos realizados e infratores levados aos tribunais.
· Formação: ênfase na legislação penal.
Ensino irreflexivo.
· Gerência: refratária ao controle externo.
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·
Atitude reativa. Falar em segurança é falar em desordem; de um problema da
polícia e da força armada.
· Atividade policial referida a táticas de
guerra: inimigo, cerco, vitória. Formalismo burocrático e militar.
· Concentração no aparato, em prejuízo da
polícia técnica e das técnicas de mediação. Não interessam os crimes já
acontecidos.
· Traço maniqueísta. Foco em "suspeitos? em
abstrato: "nós? contra "eles?.
· Pretensão de "erradicar? o crime e "acabar
com a desordem?. Não seletividade no uso da força.
· Desempenho referido à quantidade de
prisões, de mortos em confronto, e de
material apreendido.
· Formação: ênfase em táticas militares.
Ensino irreflexivo.
· Gerência: refratária ao controle externo.
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·
Atitude proativa. Falar em segurança é falar em prevenção; de um problema da
comunidade e do governo.
· Atividade policial referida às políticas de
prevenção do crime (prevenção primária, secundária e terciária).
· Concentração na mediação dos conflitos no
espaço público e nas técnicas de abordagem. Repressão como parte da
prevenção.
· Traço comunitário. Foco nos cidadãos em
geral e nas vítimas. "Suspeitos?, quem?
· Pretensão de "controlar? o crime e mediar
os conflitos de interesses. Seletividade no uso da força.
· Desempenho referido às maiores ou menores
taxas de criminalidade, e aos riscos de vitimização da população.
· Formação: ênfase nas técnicas de abordagem
e de mediação. Ensino reflexivo.
· Gerência: controle externo como insumo
gerencial.
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