NOTA
PRÉVIA. Este texto é o desdobramento do tópico 10.6 (Taxas de elucidação de
crimes. "Policiar" e "Investigar"), publicado originalmente em 2003 (Cf. DA SILVA,
Jorge. Criminologia crítica: Segurança e polícia. Rio: Forense, 2ª ed.,
2008, Cap. X). É aqui publicado sob a forma de artigo, reformulado, a fim de dar conta de
fatos presentes que corroboram as premissas que orientaram a sua
elaboração.
Policiar e investigar
No
dia 7 de janeiro de 2013, o jornal Folha de São Paulo anunciava, a propósito da
violência naquela cidade: "Polícia só esclarece 1 das 24 chacinas do
ano passado em SP". O jornal constatava um aparente absurdo. Uma semana
depois, no dia 13 de janeiro, lia-se no jornal O Globo: "No Brasil, só 5% dos homicídios
são elucidados. No Reino Unido, taxa é de 85% e nos EUA, de 65%; 85 mil
inquéritos abertos em 2007 ainda estão inconclusos". Outro aparente
absurdo. Aparente porque absurdo é algo anormal, ilógico, sem sentido.
Numa
análise apressada, alguém poderá concluir, a partir dessas matérias, que se
trata de despreparo da polícia brasileira, ou que os policiais ingleses e
norte-americanos são mais competentes, o que,
evidentemente, é uma simplificação grosseira, pois descarta fatores outros que
diferenciam aquelas sociedades e os seus modelos de justiça e segurança dos
nossos. A presente análise pode dar ideia dessas diferenças, sobretudo no
que diz respeito a como, em geral, é concebida a atividade policial no mundo, e como
é desenvolvida no Brasil, devendo ficar claro que o foco são as polícias
estaduais.
Universalmente, a atividade-fim da polícia desenvolve-se assentada em dois pilares fundamentais:
o policiamento (presença ostensiva e ordem pública) e a investigação (apuração
das infrações penais), funções normalmente executadas pela mesma polícia. Entre nós, uma peculiaridade: em cada estado da Federação, essas funções
são executadas por duas polícias. Ocorre que, apesar
dessa bipartição, nota-se a tendência, até mesmo entre meios ilustrados, a se avaliar
o desempenho da polícia estadual como se a sua única função fosse a ostensiva. Certamente
uma das razões para isso é que quando se fala da polícia, costuma-se ter como referência
a sua visibilidade, com a redução das avaliações a esse aspecto particular, o que talvez explique
a desinibição com que as pessoas em geral, e até estudiosos do tema, discorrem
sobre policiamento (efetivos, viaturas, armas, abordagens, quantidade de operações, prisões
e apreensões), e se calam sobre investigação (provas, polícia técnica e tecnologias, diligências, criminalística,
laboratórios, e principalmente taxas de elucidação de crimes).
Faz
sentido. Em sociedades com fortes raízes autoritárias e hierárquicas, como a
brasileira, o uso da força costuma ser entronizado como meio ótimo para manter
a ordem e lutar contra o crime. Em tal contexto, a polícia tem dificuldade de
se desvencilhar da velha lógica de prender primeiro e "investigar" depois, ou
não investigar. Aliás, não vai longe o tempo em que a "técnica" do pau-de-arara
era aplicada à larga nas dependências policiais para arrancar confissões de suspeitos
"presos para averiguações". Mais: hoje, no exterior, é difícil alguém acreditar
que 40% dos 500 mil encarcerados no Brasil sejam presos provisórios, aguardando
julgamento definitivo (EBC/Agência Brasil, 26/10/2012).
Não
se vá isentar de responsabilidade a polícia e os seus dirigentes pelas pífias
taxas de elucidação de homicídios no País. Trata-se de um escândalo, uma
espécie de genocídio consentido. Porém impõe-se reconhecer que há grande desequilíbrio
na atenção dada aos ramos do policiamento e da investigação pelo poder político
e pela sociedade civil. Nas cidades, ninguém reclama da "falta de
investigação", a não ser quando vítima direta ou indireta de algum crime. Não
raro, até mesmo residentes em áreas com forte presença policial continuam a
pedir mais polícia, ou seja, policiamento. Daí resulta certa confusão que,
antes de desorientar os operadores da segurança pública, desorienta a própria
população. É preciso perguntar se o grande número de chacinas e de homicídios sem apuração,
de que o País é um dos campeões mundiais, é resultado da falta de
policiamento ou de investigação, ou dos dois.
É
compreensível que os cidadãos se confundam a esse respeito, mas é inaceitável
que o poder público e os executivos da segurança convivam com a indistinção
entre essas duas funções, de vez que um bom sistema policial pressupõe
bom policiamento e boa investigação, não se podendo falar em eficiência da
polícia como um todo sem levar em conta este fato. Caso contrário, na ânsia de
responder aos apelos da população por mais polícia (entenda-se, mais
policiamento), o governo contribui para a atrofia do sistema.
Investigar. O inquérito como solução
Dispenso-me
de tecer maiores comentários sobre a vertente do policiamento pelas razões
aludidas acima. Fixo-me na da investigação, considerada, em todo o mundo
democrático, a área nobre da atividade policial. Julgo essencial partir de pelo
menos duas perguntas: (a) No Brasil, os crimes de toda sorte (homicídios,
latrocínios, arrombamentos, roubos de automóveis, de carga, a residências) são
apurados, vale dizer, investigados?; (b) No que diz respeito aos que são
apurados, em que nível técnico tem sido desenvolvido o trabalho de
investigação?
A
resposta à primeira pergunta é um rotundo não, pois, como se sabe, apenas os
crimes de grande repercussão, ou que envolvam pessoas consideradas importantes,
é que merecem maior atenção, e mesmo assim, em muitos casos, por pressão da
mídia. Quanto à segunda pergunta, só especialistas em investigação policial poderiam
respondê-la adequadamente. Vamos a eles.
Discorrendo
sobre a atividade nos Estados Unidos, Frank E. Klecak
compara a investigação a um quebra-cabeça, com a diferença de que, neste, todas
as peças estão disponíveis, cabendo à pessoa simplesmente, mediante tentativas
e erros, juntá-las; e na investigação, as peças, embora também existentes, não
são dadas de antemão, cabendo ao investigador descobri-las, coletá-las e
juntá-las. Para essa tarefa, Klecak recomenda cuidados que vão desde a investigação
preliminar no local do crime (iniciada quase sempre pelo patrulheiro de rua) às
limitações constitucionais e legais. Terá que coletar informações e dados onde
quer que eles possam ser encontrados, no terreno, devendo ter em mente que determinadas
informações só serão obtidas informalmente, em conversas com pessoas que
queiram cooperar, independentemente de depoimentos formais e
interrogatórios.
Já
Coriolano N. Cobra subordina
a investigação policial à existência de um inquérito, que seria condição
necessária para que aquela se desenvolvesse. Baseia-se no que dispõe o Código
de Processo Penal - CPP (confiram-se os artigos 4º, 6º e seguintes, e outras
disposições relativas à tomada de depoimentos e interrogatório). É uma visão restritiva.
No fundo, este fato (ligar a investigação à existência de um inquérito) se
constitui num dos principais fatores de esse ramo da atividade policial não se
desenvolver por aqui, em boa medida condicionado que está à tomada de
depoimentos e interrogatórios e outros procedimentos formais.
A propósito
da segunda pergunta formulada acima (sobre o nível técnico da investigação),
pode-se então arriscar responder, com base nos ensinamentos dos dois autores
citados: nos estados da Federação, a investigação policial é
negligenciada, confundida com a atividade policial judiciária. Desenvolve-se, portanto,
em nível técnico insatisfatório, seja por falta de apoio governamental e de
cobrança da sociedade civil, seja por desinteresse da própria polícia.
Assim, na avaliação do desempenho
da polícia, cumpre ter em mente, repita-se, que o seu trabalho sustenta-se nos
dois pilares já mencionados. A avaliação do
policiamento parece mais fácil, principalmente em razão da sua visibilidade. Não se vá, portanto,
avaliar o desempenho investigativo com os mesmos critérios, pois o trabalho dos investigadores deve
ser reservado, discreto, na busca da elucidação de crimes já acontecidos, e o resultado consiste
na reunião de provas da autoria e da materialidade dos mesmos. Daí,
independentemente do exame do processo investigativo em si, o principal
instrumento a utilizar são as taxas de elucidação, como aparece no primeiro
parágrafo deste artigo. Vimos ali que, em São Paulo, no ano de 2012, de 24
chacinas ocorridas, a polícia só esclareceu uma; e que, no Brasil, apenas 5%
dos homicídios são elucidados. Um parêntese: em 2003, em pesquisa realizada
pelo Instituto de Segurança Pública - ISP (SSP/RJ), a taxa de elucidação de
homicídios girou em torno de 4%, incluídos os casos de flagrante delito, ou
seja, de cada 100 homicídios, não mais que cinco tinham a autoria conhecida.
Um sistema policial esquizofrênico
Até finais de 1960, as atuais
Polícias Militares não eram encarregadas do policiamento ostensivo, função
atribuída às demais organizações policiais existentes (guardas civis, polícias
de vigilância, guardas de vigilância, polícias de trânsito etc.). Eram corporações
marcadamente aquarteladas. Na Constituição de 1946, que vigeu até a de 1967, elas
apareciam no Título VII - Das Forças Armadas -, como "forças auxiliares, reserva do Exército", e "instituídas para a
segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no
Distrito Federal" (Art. 183), funções
essas que remetiam, respectivamente, à defesa do Estado e ao controle de
manifestações e distúrbios civis. Em 1967, o Decreto-Lei 317 atribuiu-lhes a
exclusividade do "policiamento ostensivo
fardado". Acirra-se aí a competição entre as duas polícias, uma querendo
fazer o papel da outra.
Em 1988, depois de muita discussão, os constituintes decidiram não unificar as duas polícias estaduais, medida
que chegou a ser cogitada. Se assim fizessem, teríamos uma
polícia única com um ramo investigativo e outro ostensivo, como acontece na
maioria dos países. Na verdade, embora defendida por alguns setores da
sociedade, a unificação encontrou resistências, sobretudo de oficiais superiores
da PM e de delegados de polícia. E do Exército, que não abria mão de que as Polícias Militares continuassem como suas "forças auxiliares e reserva" (Cf. Constituição de 1988, Art. 144, § 6º). Nota: Foi dedicado um capítulo à Segurança Pública, curiosamente dentro do título "Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas" (Cf. Título V, capítulo III). O capítulo limitou-se a elencar órgãos policiais. Segurança pública virou, definitivamente, sinônimo de polícia.
Mantidas
as duas polícias, os constituintes trataram de definir as suas funções no Art.
144, atribuindo a uma delas as atividades de "polícia judiciária e a apuração das infrações penais", e à outra as
de "polícia ostensiva e a preservação da
ordem pública" . A
Constituição também previu no § 7º do citado artigo: "A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos
responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas
atividades". Desde então, em vários momentos se tentou editar a referida
Lei para regulamentar o Art. 144, porém os interesses das categorias
envolvidas, mais do que os da população e os das corporações, têm inviabilizado
a medida. No caso das polícias estaduais (a regulamentação também trataria das
corporações federais e municipais), "organizar e disciplinar o funcionamento" não seria muito mais do que reforçar o que já está previsto, esclarecendo apenas
o que se deve entender por "polícia judiciária", "apuração das infrações
penais", "polícia ostensiva", e "preservação da ordem pública".
Na verdade, com ou sem a citada regulamentação, não há motivo para confusão. Basta
indagar sobre que formação, conhecimentos, técnicas e meios materiais são
necessários para o exercício da "polícia ostensiva e a preservação da ordem
pública" (PM), e para o da "polícia judiciária e a apuração das infrações
penais" (PC). De um lado, organização, táticas, técnicas e procedimentos em que
preponderem a voluntariedade, o vigor físico, a prontidão e o adestramento, como
no caso da intervenção em tumultos ou na abordagem de pessoas e veículos, em
que as principais falhas a evitar são a abordagem perigosa para o policial e o
abordado, o emprego excessivo da força e o disparo indevido ou incorreto da
arma de fogo. De outro, organização, técnicas e procedimentos que têm a ver muito
mais com o mundo das provas, isto é, com a criminalística, a perícia técnica, o
raciocínio lógico, a paciência e a discrição, o que exige do policial investigador
conhecimento diferenciado e ativação permanente da inteligência, não tendo a
voluntariedade, o preparo físico, a prontidão e o adestramento a mesma
importância, e
vice-versa.
Lamentavelmente,
a observação da realidade mostra que as polícias nem sempre se estruturam de
acordo com esses diferentes critérios, e muitos policiais parecem não entender
a própria função, fato que acarreta dois problemas adicionais: a população é
levada a acreditar que a única diferença entre as duas polícias reside no nome;
e estas são incitadas à competição em torno dos mesmos marcos (visibilidade,
aparato, combate, quantidade de drogas e armas apreendidas, operações especiais etc.). Pior,
perdem-se os parâmetros segundo os quais se possa avaliar o desempenho da
polícia como um todo e de cada função em particular.
Tenta-se contornar esses problemas e o fato de a
polícia dos estados ser partida (com duplicidade de comandos, de centros de operações,
de academias, de unidades especiais, de objetivos e metas) reforçando-se as
secretarias de segurança e congêneres. Estas incham e, sem conseguirem promover
alguma unidade das ações, acabam, elas mesmas, transformando-se numa terceira
polícia, a competir com as outras duas. Resultado: três polícias e três chefes
de polícia. Não pode dar certo.
Ademais
de todos esses problemas, a atividade policial é prejudicada, como já
mencionado, pelo fato de a investigação dos crimes estar atrelada ao inquérito
policial, em obediência às prescrições do Código de Processo Penal - CPP. Como
se sabe, o CPP é fruto de um Decreto-Lei de 1941, da ditadura Vargas, que
visou, dentre outras coisas, a produzir, na esfera do Executivo, um processo
criminal "preliminar", como explicitou o então ministro Francisco Campos na
Exposição de Motivos do Código. Daí, como peça processual, o que
verdadeiramente vai importar é que os ritos e prazos sejam cumpridos, implicando
o engessamento da apuração, condicionada a oitivas reduzidas
a termo em cartório policial e procedimentos burocráticos. Assim, nenhum
problema se o inquérito nada concluir a respeito da autoria e materialidade do crime, desde que, como documento, esteja bem ordenado e tenha cumprido as formalidades e prazos prescritos pelo Código; e que, no relatório da autoridade policial, estejam consignadas todas as diligências realizadas e feita menção à dificuldade ou impossibilidade de chegar ao autor. Aí começa uma espécie de pingue-pongue interminável entre a Polícia e o Ministério Público. E nos casos em que se descobre a autoria, tudo é repetido na esfera judicial. E tome papel...
Palavra final
Trata-se realmente de um
escândalo inominável, antes de ser uma vergonha nacional, que, em cada 100 homicídios, a polícia, ou melhor, o poder público (refiro-me
aos três poderes) não consiga capacitar-se para que seja descoberta a autoria
de mais de cinco, isto sem contar que entre esses cinco estão incluídos os casos
de flagrante delito. Por que essa matança não provoca uma comoção nacional, com
a exigência, por parte da sociedade civil, de que sejam destinados recursos
humanos e materiais específicos para elevar a níveis civilizados as taxas de
elucidação dos crimes, em particular dos homicídios? E por que não se pensa
numa reforma urgente do modelo de justiça criminal brasileiro, com a igualmente
necessária reformulação do modelo policial, a fim de que a atividade de
investigação (não confundir com atividade de polícia judiciária) seja colocada no devido
lugar?
É possível que a
indiferença com a matança impune tenha a ver com a identidade social da maioria
dos mortos e seus algozes. Os indiferentes não percebem que o fato de 95% de homicídios não terem a
autoria conhecida representa um convite a que novos homicídios sejam cometidos, e contra qualquer um. A mensagem que é passada com esse triste quadro é a seguinte: se
quiser praticar homicídios, não o faça às claras, e evite o flagrante, com o
cuidado adicional de não matar pessoas consideradas importantes. Agindo assim,
o risco de ser descoberto pela polícia é mínimo, menos de 5%, quase zero.
Lamentavelmente, a
instrumentalização adequada da polícia para a atividade de investigação
criminal não dá aos governos os resultados eleitorais das medidas aparatosas e
visíveis. É como no caso das obras públicas. Investe-se na construção de
praças, pavimentação de ruas e iluminação pública, mas deixam-se as cidades
atoladas na imundície, por falta de obras para ampliar a rede de esgotos.
Em
suma, não se compreende que as pessoas vivam com medo da violência nas cidades,
mas não se importem com a matança no atacado que ocorre na periferia, e que só
exijam investigação dos crimes quando são vítimas ou têm algum parente vitimizado. Aí,
exigem uma rigorosa investigação do "seu" caso particular. É lamentável, realmente, que as coisas se passem dessa maneira; que as atividades de investigação
criminal sejam tão negligenciadas. Não se deve descartar, portanto, a hipótese de
que a utilização de métodos e práticas condenáveis por parte da polícia quando
esta é instada a esclarecer algum crime tenha este fato como uma de suas explicações.
No Brasil, parece que lupas e equipamentos para reconhecer indícios, localizar e recolher vestígios não são coisas muito valorizadas pelos policiais. Importante mesmo é o combate.
Pelo exposto, não há por que estranhar os tristes números sobre chacinas e homicídios sem apuração, referidos no primeiro parágrafo deste texto, pois os mesmos fazem sentido se a análise procedida acima não for totalmente desarrazoada. É possível mesmo suspeitar que as coisas assim se passam porque convém ao establishment que não mudem. Afinal de contas, a sociedade brasileira, como já mencionado, guarda fortes marcas de uma formação hierárquica, autoritária e discriminatória. O sistema político e o de justiça criminal (no qual se inclui a polícia) parecem preocupados apenas com a proteção do patrimônio e dos bens materiais, a qualquer custo. Nenhuma preocupação com a vida humana, sobretudo a dos pobres.
A quem aproveita não mudar esse quadro?
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