(Nota: Texto-base da apresentação na "Roda de Conversa
com a LEAP e o Público", por ocasião do II Seminário "DROGAS. LEGALIZAÇÃO
CONTROLE", realizado na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ,
em 24/11/2014)
Por que mudei de opinião
Por
muito tempo durante minha carreira na Polícia Militar, achava que os usuários
de drogas ditas ilícitas eram os principais responsáveis pelo tráfico, devendo
também ser reprimidos com rigor. Já no final da carreira, tinha minhas dúvidas.
Ora, por mais que o governo e a polícia se empenhassem, até com o emprego das Forças
Armadas, nada mudava, ou melhor, mudava para pior: mais traficantes, mais
usuários, mais armas, mais tiroteios, mais mortos e incapacitados, mais
"comandos" e "facções", mais "bondes" do mal em vias expressas, mais medo.
Eu
não via incoerência em sustentar que o álcool, substância psicoativa que
consumia e consumo, não era prejudicial à saúde se consumido com moderação, ao
contrário da maconha e da cocaína, por exemplo, substâncias que, para mim, eram
coisas do demo. Incomodavam-me as campanhas pela legalização, por dois motivos:
primeiro, porque via nos discursos dos seus defensores um incentivo ao consumo,
já que confundia legalizar com "liberar geral"; e segundo, porque temia, em
caso de a legalização efetivar-se, que houvesse uma corrida desenfreada às
drogas. Ficava imaginando pessoas tomadas pelo vício, trôpegas, caídas pelas
calçadas (aliás, como vemos muitos dependentes do álcool). Ainda na ativa da
PM, exercendo altos cargos na cúpula, cheguei à conclusão de que, por
mais que nos empenhássemos na "guerra às drogas", o que então fazíamos não
passava de um constante "enxugar gelo", expressão que utilizei em texto há
cerca de vinte anos para caracterizar a inconsequência de tal política. Hoje,
tenho outras certezas, dentre as quais a de que o proibicionismo criminal, perseguido no Brasil com incompreensível avidez, beira a barbárie. Esta a razão de, ainda na ativa, ter concluído que a "guerra" era inútil, e depois, ter aderido à ideia da criação do braço brasileiro da LEAP
(Law Enforcement Against Prohibition
/ Agentes da Lei contra a Proibição).*
Drogas. Questão social ou problema de
polícia?
O
maniqueísmo é marca forte da sociedade ocidental, mais ainda no Brasil. Questões
complexas costumam ser tratadas na base do contra ou a favor, do tudo ou nada,
do oito ou oitenta. Dificilmente se pensa em alternativas aos extremos. As drogas
são exemplo acabado desse vício, o que conduz a um sectarismo paralisante,
alimentado pela desinformação e pelo preconceito. Há quem veja
incompatibilidade moral entre a posição dos defensores do proibicionismo e a dos que defendem o controle legal pelo Estado. Não
há incompatibilidade alguma. Nos dois grupos, os de boa fé concordam em que o
consumo abusivo de drogas psicoativas, lícitas ou ilícitas, pode prejudicar a
saúde e levar a outros problemas, razão pela qual concordam em que se adotem medidas
no sentido do seu controle, sobretudo das mais perigosas. As divergências
começam aí, pois a escolha (sim, escolha) das drogas que seriam "mais
perigosas", "menos perigosas" e "não perigosas" vai depender menos da ciência e
mais de interesses econômicos e políticos, ou de alinhamentos ideológicas e de fundo
religioso. Além disso, há outro complicador: para uns, controlar significa
adotar política legislativa que vise a dificultar o acesso às drogas, conter o
abuso e evitar danos pessoais e sociais; para outros, controlar significa
proibição total, pura e simplesmente, tarefa a ser deixada a cargo do sistema
policial-penal e das forças militares.
É
este último modelo, o da proibição
criminal, que está posto como natural pela governança global. Daí, qualquer
proposta alternativa ao mesmo costuma ser vista como leviana, absurda, o que
gera um sectarismo paralisante: de um lado, colocam-se os que se apresentam
como missionários do bem; de outro, estariam os propagadores do mal. Nesse
clima, nota-se que, em maioria, os encarregados de velar pelo cumprimento da
lei (policiais, juízes, promotores, operadores do sistema prisional, militares)
incorporam, para além do dever do ofício, o espírito missionário. Os policiais
em particular, além disso, incorporam o espírito guerreiro, o que os leva a
matar e morrer inutilmente, se é que há utilidade na morte matada.
A premissa da "guerra": afastar as
drogas dos jovens
Quando
o presidente Richard Nixon lançou a sua ?cruzada? contra as drogas, alegou que
o fazia para proteger a juventude norte-americana. Seria preciso afastar as drogas dos jovens. Tal premissa
implicava que se devessem envidar esforços contra as drogas em si, para acabar
com elas, vencê-las. Na verdade, tratava-se de claro apelo totalitário, sem
qualquer preocupação com a prevenção, a educação, os cuidados com a saúde dos
jovens nem com a assistência social. Por que Nixon não partiu de outra
premissa, a de que era preciso afastar
os jovens das drogas? Óbvio: esta premissa não atendia aos interesses
políticos nem geopolíticos do governo, cujo objetivo principal era reprimir grupos
específicos envolvidos na luta por direitos e liberdade: negros, latinos, mulheres,
estudantes, protagonistas dos movimentos civis, da contracultura, do "é
proibido proibir". Na realidade, as drogas eram um pretexto, um atalho.
A premissa da paz: afastar os jovens das
drogas
Dia
desses, em comentários no meu blog, dois leitores foram contra a minha posição,
sob a alegação de que possuíam parentes problemáticos por causa das drogas, e
que só quem já passou por isso sabe como é triste. Os que pensam assim não se
dão conta da incoerência do argumento, ou seja, que o drama particular a que se
referem acontece no modelo atual, o da proibição
criminal. No fundo, essas pessoas são proibicionistas por duas razões
principais, grosso modo: pelos potenciais
danos individuais (danos à saúde, overdoses letais, degradação pessoal,
alienação em relação ao trabalho, ao estudo etc.); e pelos potenciais danos
familiares (desagregação familiar, furtos em casa, violência contra familiares
etc.).
Impressiona-me
o fato de essas pessoas não se tocarem com os danos em escala provocados pela "guerra
às drogas", em especial a guerra militarizada, como a travada nas principais cidades
brasileiras. Ora, também me preocupo com os danos individuais e familiares, porém
o que me leva à posição que assumo é o que estou chamando de ?danos coletivos?, que afetam, não estes ou aqueles indivíduos em particular nem esta ou aquela
família, mas a coletividade de uma cidade ou de uma comunidade inteira, como
resultado de confrontos militarizados entre facções ou entre estas e as forças
de segurança. Preocupo-me com a naturalização da matança (de traficantes, de
supostos traficantes e de jovens policiais; e pior: de pessoas que nada têm a
ver com a história, atingidas por balas perdidas). Preocupo-me com os tiroteios
diários em "comunidades", com as crianças tendo que deitar no chão da escola para
não serem atingidas (e às vezes sendo), ou ficando sem aula dias seguidos, várias
vezes no ano, como se tornou rotina. Em suma: há quem, na ilusão de que o proibicionismo evitará que um parente
venha a desviar-se ou morrer de overdose, continue a apoiar a "guerra às
drogas", sem perceber que, com isso, de forma indireta, endossa a matança que
se processa em "comunidades" e na periferia.
Um círculo vicioso macabro
Já
faz mais de duas décadas que a mídia divulga notícias que revelam a aparente insensatez
(aparente...) com que o tema das drogas tem sido abordado entre nós. Abaixo,
uma amostra de um círculo vicioso macabro, sem fim. Começo com notícia de
quinze anos atrás:
"Em todo o país, no ano de 1999, a PF
conseguiu evitar a distribuição de 5,83 toneladas da droga?/ "Morte de traficante motivou
ataques a PMs em São Paulo" / "Operação do Bope no Juramento termina com
cinco suspeitos mortos" / "PM feminina morre com um tiro de
fuzil 7,62, o tiro teria ultrapassado o colete a prova de
bala!" / "Criança morre atingida por bala perdida durante operação do
Bope" / "PM de UPP do Morro da Coroa perde as duas pernas após ataque de
bandidos com granada" / "Policiais mortos pelo PCC levaram, em média, 7
tiros" / "Polícia já apreendeu mais de meia tonelada de drogas na
Paraíba" / "Polícia apreende oito quilos de cocaína em Mato Grosso" / "Polícia Rodoviária Federal apreende cem quilos de cocaína em caminhonete
que ia para o Rio" / "Ônibus incendiados na Grande BH tiveram ordem de
presídios, diz polícia" / "Traficantes do Alemão tinham plano para
assassinar general que comandava ocupação" / "Tiros levam medo de volta a
favelas com UPP no Leme" / "Ônibus incendiados em atentados em Santa Catarina:
já são 60 ataques registrados desde o dia 30 de janeiro" / "Polícia Militar
confirma morte de subtenente do Bope durante operação no Complexo do Lins" /
"PM morto na Mangueira, Rio, será enterrado neste sábado:Tiroteios assustaram
moradores de quatro comunidades com UPP. Na Ladeira dos Tabajaras, o Túnel
Velho chegou a ser fechado" / "Guerra do tráfico cancela eliminatória de samba
na Mangueira" / "Tráfico desafia
Exército em tiroteio no Complexo da Maré, zona norte do Rio" / "Homem morre em
confronto com Exército na Maré, Rio" / "Soldado do exército é baleado após
tiroteio com criminosos na Maré" / "OEA: Brasil, Colômbia e México são os
países com mais homicídios no continente".
Pergunte-se:
E daí? E
o que dizer da galeria recente de heróis mortos no Rio:
"Comandante da UPP Nova Brasília morre
após ser baleado no Alemão" / "PM morre em tiroteio no Morro da Mangueira, no
Rio" / "Subcomandante da UPP Vila
Cruzeiro é morto com tiro na cabeça" / "Família diz que PM da UPP morto estava
apreensivo com morte de colegas" / "No Rio, UPPs batem recorde de PMs
feridos e mortos" / "Um policial de UPP morre e outros seis ficam feridos em
ataques de bandidos" / "Metade das mortes de PMs no Rio em 2014 foi em áreas de
UPPs" / "Número de policiais militares mortos em 2014 já chega a 103".
Mortes
e mais mortes. Enterros e mais enterros, obrigando a PM a manter equipes para
as honras fúnebres. Até quando?
Conclusão
Não
foi fácil admitir que minha opinião sobre a questão das drogas não era minha. Aliás,
não me competia, como policial, ter opinião própria sobre o tema. Devia cumprir
a lei, e pronto. Com efeito, pensava de acordo com o que era ensinado pelo establishment, do qual as forças de
segurança são parte. O tempo, no entanto, me levou a concluir que o proibicionismo produzia o oposto do que
prometia; e que as drogas são questão social importante, e não mero problema de
polícia. Mais: que a premissa do proibicionismo, a de afastar as drogas dos jovens, responde
pelo seu fracasso e pelos dramas pessoais, familiares, sociais e da coletividade disseminados
pelo mundo, em especial a matança de jovens nos países periféricos, como ocorre
no Brasil.
Com
o mosaico de notícias sobre o circulo vicioso e macabro da "guerra" militarizada às drogas, mostrado acima, fica evidente que o seu verdadeiro
objetivo é uma caixa-preta. Pergunte-se: que efeitos a apreensão de toneladas
de drogas ditas ilícitas produz para o fim do mercado de drogas? Que efeitos a
morte de centenas de traficantes da ponta e suspeitos de sê-lo produz em proveito da paz pública? Seriam
os traficantes mortos, ou presos, insubstituíveis? A que a morte de centenas de policiais e
de pessoas das "comunidades" contribui para a paz pública? A quem interessa a
manutenção do proibicionismo, vale
dizer, da "guerra às drogas"? É claro que há interesses insondáveis, mas um é
bastante claro: o da indústria de armas e munição, que abastece todos os lados.
Se a guerra acabar...
Em
se tratando da busca da paz, não há como deixar de mencionar o programa das
Unidades de Polícia Pacificadora - UPPs - do Rio de Janeiro. É importante o apoio
da sociedade ao programa, o qual, na origem, visa a proporcionar segurança aos
moradores de "comunidades". O apoio, no entanto, não pode levar à alienação.
Apoiar não significa fazer vista grossa a situações que nos incomodam, ou
sublimá-las. Ora, como entender que repórteres trajando coletes a prova de
balas, em meio a intensos tiroteios e protegendo-se atrás de paredes e muros,
noticiem os fatos dizendo que estão numa comunidade "pacificada", como fazem
com frequência?
Ainda:
compreende-se que as pessoas sejam a favor da descriminalização ou legalização
de determinadas drogas em função da preocupação com eventuais danos individuais ou familiares,
mas não se compreende a sua indiferença aos danos coletivos (tiroteios, mortes e
pânico) que afetam a população como um todo ou comunidades inteiras.
Diante
desses problemas, é difícil saber o que fazer, ainda que saibamos o que não fazer, como demonstrado acima. Impõe-se
pensar em alternativas que fujam ao modelo belicista e macabro vigente no
Brasil, o que implica partir da premissa de que é preciso afastar os jovens das drogas, e não o contrário, como vimos. Aí, fará
sentido a alternativa de sepultar o proibicionismo,
a fim de que o Estado assuma o controle legal de todas as drogas, da mesma
forma que os Estados Unidos fizeram quando resolveram pôr fim à "guerra ao
álcool". Enquanto isso não acontece, há que substituir a repressão por uma
combinação de educação, família, valores humanos e tratamento para quem o
desejar.
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