A violência e os
antagonismos extremados vividos atualmente pela sociedade brasileira trazem-me à
mente algo que escrevi há quinze anos*. Aí vai, resumido e adaptado:
PARETO, MOSCA E A CIRCULAÇÃO
DAS ELITES
No final do século XIX e início do século XX,
questionando idéias canônicas à época, dois importantes teóricos preocupavam-se
com os desacertos das "elites? ao tentar justificar o seu poder com tais
idéias. A superioridade dos europeus seria uma imposição da natureza: da raça,
do clima, da evolução. Refiro-me a Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto,
considerados teóricos das elites por suas concepções antidemocráticas. Cabe a
referência porque, com mais de um século de diferença, ainda se observam
racionalizações semelhantes entre nós, nem sempre explícitas. Esses autores
empenharam-se em advertir as elites do seu tempo para a necessidade de evitar a
sua desintegração por não entenderem que o poder se sustenta em outras bases.
Para eles, a teoria democrática, do governo da maioria, era uma ilusão. Tanto
Mosca (1939) quanto Pareto (1909) sustentaram, com base na
História, que o poder está sempre nas mãos de uma minoria organizada (a "classe
política?, no dizer de Mosca), cuja estabilidade dependeria de como aplicasse o
que este chamou de "fórmula política?: a maneira pela qual essa "classe?
procura legitimar o seu poder e a maioria é levada a aceitar a dominação.
Para Mosca (1939: p. 53), a alternância no
poder não significa mudança da "classe política?, pois, em princípio, a alternância
se dá sempre dentro da mema classe, a qual, para esse efeito, constitui um
grupo homogêneo e solidário contra a maioria desorganizada e dividida. A chave
para a sua estabilidade, portanto, estaria na capacidade de organização. Na
mesma linha teorizou Pareto, para quem a estabilidade no poder depende
igualmente de que as elites dirigentes se apliquem em ser intelectual, física e
moralmente superiores às camadas populares, o que, da mesma forma, não é um
dado da natureza. A definição de elite que apresenta é uma crítica contundente
aos seus desvios ético-morais:
"Pode haver uma aristocracia
de santos ou uma aristocracia de bandoleiros, uma aristocracia dos instruídos,
uma aristocracia dos criminosos e assim por diante. O conjunto das qualidades
que promovem o bem-estar e a dominação de uma classe numa sociedade constitui
algo que chamaremos simplesmente de elite. (p. 155)
Portanto, temos aí que,
mesmo num modelo autoritário como o vislumbrado por esses autores, não basta
capacidade de organização. É preciso retidão ética e compromisso com a maioria
para que esta seja levada a aceitar o arranjo da "fórmula política? adotada
pela "classe dirigente?, o que, no Brasil, consideradas as práticas elitistas, é,
no momento, uma impossibilidade. Trocando em miúdos: é preciso que a
elite dê o exemplo e não cuide apenas de si, virando as costas para a maioria.
O contrário é uma "fórmula? que leva inapelavelmente à sua derrocada. Mesmo
para esses autores, a força e a repressão pura e simples são instrumentos
débeis para a manutenção do status quo. No caso brasileiro, portanto,
não se trata mais da tranquila "circulação das elites?, como diria Pareto, com
"esquerda? e "direita?, vale dizer, progressistas e conservadores, saindo do
mesmo estrato social. Daí, insistindo em métodos de justificação do poder
caducos, como os baseados na presunção de sua superioridade etnorracial, na
força do dinheiro e na força do aparato repressivo, a elite brasileira
irritaria profundamente esses seus defensores. Pior, deixá-los-ia desolados
ante a impossibilidade de desviá-la do abismo, valendo o raciocínio para as
elites brasileiras.
Isto posto, não será
descabido admitir a hipótese de que o quadro desolador observado no país
reflete centralmente o choque da ordem tradicional, sintetizada na fórmula
"Cada macaco no seu galho?, com uma ordem que a desafia, não raro com o uso da
violência. Sob a antiga fórmula, o que se tinha por integração era, na verdade,
uma acomodação em que cabia aos deserdados do Brasil Colônia e do Brasil
Império conformarem-se, alegres, com o que lhes sobrava do arranjo. Uma
acomodação tida por "natural? pelos seus beneficiários, situados nos galhos
mais altos e frondosos, mas vivida com ressentimentos dissimulados pelos
tradicionais prejudicados por ela, situados nos galhos secos rentes ao chão.
Esse arranjo hierárquico, no entanto, não impedia que se desenvolvessem
relações cordiais e cooperativas, situação que vai se alterando à medida que as
carências aumentam e os despossuídos vão adquirindo consciência dos seus
direitos. As demandas cidadãs se avolumam sem terem maior ressonância. A
competição pelos bens materiais e simbólicos se acirra, sem que o arranjo tradicional,
beneficiando desproporcionalmente as "classes dirigentes?, se alterem. As
tensões aumentam, e agora, de uma integração precária, parece estar-se passando
para uma real desintegração, fazendo-nos pensar que o conflito social
representado por esses fatos esteja evoluindo, não para uma acomodação, mas
para uma ruptura, a qual corresponderia ao que Angelina Peralva (PERALVA, 2000) entende ser um processo de "dessegregação?,
processo este acentuado pela abertura democrática após o regime militar, a
despeito da qual se observaria uma "continuidade autoritária?,
acarretando a formação de uma contracultura marcada pela revolta. Sem rodeios:
descambando para um conflito civil, entre o Estado e os grupos hegemônicos,
de um lado, e os grupos discriminados, de outro.
No Rio de Janeiro, por exemplo, tal conflito
se prenuncia nas manifestações violentas de revolta de moradores de "comunidades?
com as suas condições de vida e com a forma como, a seu ver, são tratados pelo
Estado, sobretudo pela seletividade com que opera o sistema policial-penal; e
se depreende também da ação cada vez mais audaciosa dos bandos criminosos, os
quais têm demonstrado não temerem nem a polícia nem as Forças Armadas.
Ora, se a justificação da
hegemonia das "elites?, sobretudo da "classe política?, girar apenas em torno
dos três marcos mencionados acima (a sua identidade etnorracial, o acúmulo de patrimônio e a superioridade
bélica dos que estariam a seu serviço), não há por que estranhar que os grupos
discriminados ? os "outros? de grandes cidades ? lutem para afirmar-se
socialmente nesses mesmos marcos. As camadas populares desconfiam de que
valores e crenças que insistem em inculcar-lhes na mente, como a ética do
trabalho, o amor à Pátria, o temor a Deus, o primado do direito fazem parte
muito mais da retórica das "elites? do que da sua prática. "Faça o que eu digo,
não faça o que eu faço?!
Referências:
MOSCA, Gaetano. The ruling class
(Tradução de Elementi di Scienza Política, 1896). New York: McGraw-Hill,
1939.
PARETO, Vilfredo. Manuel d? economie
politique. 1909.
PERALVA,
Angelina. Violência e democracia: o
paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
*(Excerto,
resumido, do tópico 1.4.2 de: DA SILVA, Jorge. Violência e identidade
social: um estudo comparativo sobre a atuação policial em duas comunidades no
Rio de Janeiro (tese de doutorado), 2005.
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